sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Polipersonae

Aqui na Estrela as miúdas são tão uniformizadas e parecem-se tanto umas com as outras que eu diria que muitas delas são a mesma. Há pouco, uma passou por mim e eu disse-lhe "se te queres apanhar é bom que te despaches, que já vais ali à frente, quase a chegar ao metro" e ela, em passo acelerado, meio ofegante, "não há problema, quando eu chegar, espero por mim". Depois virou-se para si mesma, que vinha um bocadinho mais atrás, e gritou "anda, despacha-me!".

domingo, 4 de outubro de 2015

Uma manhã nas finanças

-Quanto é que ganhou o ano passado?
-Ganhei ximil e quinhentos.
-Ok... ora, isso em cinco meses. Dá xisípsilon por mês, ora vezes doze...
-Como assim vezes doze?
-Então, para saber quanto é que ganharia no ano todo.
-Está aí quanto é que eu ganhei no ano todo.
-Mas só trabalhou cinco meses.
-Sim.
-Então, eu assim faço o cálculo.
-Escute: está aí quanto é que eu ganhei no ano todo. Trabalhei só cinco meses. Sim. Do ano inteiro, trabalhei cinco meses. E ganhei, no ano todo porque só trabalhei cinco meses, xismil e quinhentos euros. Percebeu?
-Ouça, você não está a perceber. Eu preciso de saber quanto é que você ganharia em 2014.

(...)

-Criaturinha... tira a puta da cabeça de dentro do cu e dá-me ouvidos, se fazes favor: 2014 já acabou. Ganhei xismil e quinhentos euros. Ponto. Percebido?
-Não sei como hei-de lhe explicar isto de outra maneira - e zau, imprimiu-me esta merda.

Amanhã volto lá, corto-a ao meio com um x-acto, e a seguir peço a um ser humano alternativo para me alterar esta cagada. Se não resultar, volto lá no dia seguinte e assim por diante. Saem-me mais baratos os x-actos do que o IVA.

Primeiro de Outono

no outono tenho esperanças
há o perfume novo das mulheres e das árvores
há o vento a atirar-nos borda fora
para dentro do rio agitado
-não a mim
eu fico a ver tudo cá de cima, do miradouro

o céu cinzento arruma-me as ideias
pode chover, pode chuviscar
as pessoas ficam calmas
vamos beber vinho
vamos comer castanhas
vamos esperar que tudo renasça daqui a uns tempos
vamos aproveitar agora
enquanto tudo morre

terça-feira, 28 de julho de 2015

Sumo de laranja

Nós queríamos laranjas. A ideia era descascá-las, enfiá-las no liquidificador, carregar num botão e encher uma ou duas garrafas com sumo; guardar as garrafas no frigorífico e desfrutar de uma velhice descansada, nunca mais ter sede.

À beira da estrada, a tabuleta dizia "2kg = 1 euro; 5kg = 3 euros". Parámos. Saí do carro, as laranjas reluziam sobre a mesa improvisada, debaixo do guarda-sol gasto, mas não pude deixar de sentir uma certa angústia, como se alguma coisa não batesse certo. "Boa tarde", "boa tarde" respondeu a senhora também gasta. "Não quer levar antes um dos grandes?" e eu "mas isso não me sai mais caro?" - a temperatura desceu abruptamente estagnando nuns 34 graus: o ar arrefeceu quando a dúvida se instalou. A expressão intrigada e confusa da senhora colidiu metafisicamente com a minha sensação de que as Humanidades nunca me foram de grande serventia nas horas em que uma pessoa precisa de uma resposta rápida para para dar aos atrevimentos do destino.

"Levo um saco de dois quilos que o outro pesa muito e eu estou de férias" disse eu. Agora olho para o saco, vejo as laranjas ainda por descascar e sinto que tomei a decisão acertada.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Panteão

De repente, estávamos todos vestidos com calções demasiado justos, t-shirts fluorescentes, sapatilhas muito coloridas e de aspecto sofisticado, tudo com um ar caríssimo, eu tinha uma fita na cabeça e um relógio da era espacial com conta-quilómetros. Éramos um grupo grande, tudo gente muito gorda, mas corriam todos depressa, muito mais depressa do que eu, galgavam escadas, rampas, ruas e avenidas a uma velocidade que eu não conseguia acompanhar. Fui ficando para trás, cada vez mais para trás e cheio de dores e a faltar-me o ar e então eu parei e declarei com solenidade e com o fôlego que me restava "não quero mais correr com vocês! Quero correr com gente que seja ideologicamente estimulante e fisicamente compatível comigo!" Num instante, estava no meio de velhinhos, reconheci o Alexandre Herculano e o José Saramago e diz o Saramago "o Garrett hoje não vem que já está morto" e rimos todos muito, tudo à gargalhada. Por causa do riso senti nova pontada abaixo do diafragma, era a dor de burro, tínhamos atravessado a feira da ladra e estávamos a passar ao pé do Panteão, então eu disse "opá, corram vocês que eu fico já aqui" e diz o Herculano "que se lixe, ficamos todos".

sábado, 2 de maio de 2015

Notas de prova: Praia de 1 de Maio

Abertura com sol consistente que se manteve quase sempre intenso e adormecedor; a água apresentou-se como ponto fraco, ainda com pouco estágio sobre a laje recentemente aquecida; boa temperatura com final prolongado muito agradável que soube encontrar continuidade na Esplanada do Desportivo da Guia, onde o sabor do caracol novo rematou a tarde com elegância. Casou muito bem com canecas e, no prolongamento, já em casa, com cerveja engarrafada bem fresca.

3,5/5

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Salas de espera

Existe uma conspiração oculta para nos fazer sentir fracos quando estamos num hospital. Podemos estar saudáveis, isso não importa. É o hospital que nos tira as forças com a sua criptonite subtil. As televisões da sala de espera, com o som baixo o suficiente para que nada se entenda e alto quanto baste para que saibamos que estão ligadas, dão o Herman José gordo e feio e o Carlos Alberto Moniz feio e velho. As pessoas em redor não parecem doentes mas nota-se-lhes no olhar uma súplica constante "muda de canal", "mete os resumos da libertadores", "mete no axn, está a dar o Castle". Mudo de sala, o canal é outro. Neste recanto opressivo-depressivo a Luciana Abreu ri-se muito mas não se percebe o que ela diz, ouve-se apenas o burburinho da conversa que mantém com um convidado qualquer que desconheço. O João Baião também sorri com todo o profissionalismo, todo o sentido de missão. Não há cerveja, não se pode fumar. Os olhos em redor "epá mete um filme, porra", "muda para o fox life", "mete no youtube". O meu número surge no chamador de números. A minha ficha - vejo-a no ecrã do pentium 2, um policromático todo moderno - diz "diego armes sants" e eu digo "ó senhora, eu já pedi três vezes para emendarem o meu nome" e a senhora "olhe senhor diogo, eu aqui não posso fazer nada". Sento-me e deixo-me adoecer passivamente contemplando números 760 qualquer coisa qualquer coisa que dão cheques de 300 euros por mês para toda vida durante seis meses ou dois anos ou bêmedablius que uma pessoa depois não tem dinheiro para sustentar. E nem sei se estou à espera no sítio certo.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Crítica de cinema com sesta

Pus-me a ver o Ágora, já fora de horas, e devo ter adormecido por volta das três. Acordei às cinco, estava o Orestes a tentar converter a Hipátia mas não conseguiu, depois o gang do Cirilo apanhou-a e o Davus deu-lhe uma morte misericordiosa. Não sei o que aconteceu pelo meio, mas não deve ter sido importante. O Aménabar podia ter feito uma curta, na boa.

Crítica de cinema

Relatos Selvagens. As expectativas eram altas depois de ter ouvido tanto elogio, tanto comentário e tanto aconselhamento "tens de ver, tens de ver, tens de ver".
Mas começámos mal: achei o prólogo - o episódio do avião - fraco: a ideia é engraçada, mas está muito mal trabalhada. Tudo é previsível, parece quase feito à pressa, e é demasiado explícito em quase todas as linhas de diálogo, não deixando qualquer espaço para a interrogação ou para a surpresa. O episódio do veneno sofre do mesmo mal, embora chegue um bocadinho mais longe.
É no terceiro tomo que a coisa ganha dimensões dignas: a luta na estrada é um grande momento de cinema, com tudo certo, desde a presença do gore à psicologia do herói versus cobarde numa só pessoa.
Depois, com o homem dos carros rebocados e, a seguir, com o atropelamento, o filme entra numa espécie de velocidade de cruzeiro: tudo muito bem trabalhado, óptimos diálogos, situações bem encadeadas, personagens que ora perdem, ora ganham força; forças que mudam de lugar num verdadeiro exercício de questionar, de pôr em causa - um autêntico festival de bom cinema.
Mas o melhor estava guardado para o fim. Como é que ninguém me tinha falado do casamento? É extraordinário. Vale por todo o filme. Não fosse o início frágil, a destoar completamente de tudo o que vem a seguir, seria uma obra-prima este Relatos Selvagens.

7,5/10 (Adoro dar notas a coisas.)

Três viagens de metro

#1
Só para dizer que o Metro de Lisboa é a puta mais bem paga e incompetente e nojenta deste país e arredores. Vou comprar uma bicicleta, seus punheteiros, chulos dum cabrão, sempre a fazer greves e plenários e a perturbar a circulação, puta que os pariu.

#2
"Linha azul: existem perturbações na circulação. O tempo de espera será o do costume. Pedimos desculpa por não vos causar surpresa nem espanto, apenas nojo."

#3
"Linha azul: existem, naturalmente, perturbações na circulação. O tempo de espera será a merda de todos os dias e um dia destes alguém vai perder a cabeça e pegar fogo a esta putaria toda. Pedimos desculpa por lhe estragar o dia, todos os dias, sem folgas, feriados ou férias. Valide o seu bilhete cabeceando 18 vezes na máquina e fazendo o pino em seguida."

sábado, 25 de abril de 2015

Kong

Entrei na loja de animais eram umas cinco da tarde e disse "desculpe, precisava da sua ajuda... eu queria um kong, mas não estou a perceber muito bem como é que isto funciona ou qual será o mais adequado para ela". Por esta altura, já Lola Josefina se empleirava na perna da empregada, que se derretia "ai... ela é tão fofa... és tão querida... pu-pu-pu-pu". Várias pessoas me tinham falado do kong, que era um pequeno milagre, que até o cão mais agitado se concentra de tal forma no objecto que mais parece uma criança a dormir descansada, horas e horas a fio. Tive de interromper as festinhas "desculpe... o kong", "ah... tem aqui estes mais pequeninos" e eu "ó senhora, ela come isso em dez segundos. Já me comeu uma camisola e um casaco de cabedal. Essa borrachita para ela não é mais que um tremoço". Mostrou-me uns um pouco maiores e eu tentei explicar-lhe que Lolis, com este seu aspecto de brinquedo eléctrico manuseável, tem um apetite que mete respeito e uns dentes consideravelmente afiados. Mostrou-me outro, uma espécie de kong-sempre-em-pé e eu "mas o que é que isso faz?" e ela "então, o cão deita-o ao chão e ele levanta-se sempre" e eu imaginei um rafeiro alentejano de 60 e tal quilos, à sombra de uma azinheira que já não sabia a idade, deitado a dar patadas naquilo e achar-se no paraíso da diversão. "Penso que não, ela é um bocado agitada, precisa de algo mais estimulante". Apresentou-me um outro, que faz lembrar uma maraca, veio-me à cabeça o José Eduardo Bettencourt e o Dias Ferreira em cima de um palco, "compro esse", disse eu. Mas fiquei com dúvidas que quis ver esclarecidas "ouça, acha mesmo que isto é resistente?", "do mais resistente que há - isto é mesmo Kong, esta a ver? Eles podem morder à vontade, cães grandes e tudo". Deviam ser nove da noite quando os primeiros pedaços começaram a aparecer espalhados pelo chão da casa.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Não morde

Ali ao pé do Mosteiro de São Vicente, passa um carocho por mim - daqueles de 50 anos que sobreviveram, em grande forma, a mais de três décadas de cavalo intravenoso e que, entretanto, descobriram o milagre da metadona e alternativas alucinogénicas menos destrutivas -, arnettes sem lentes na ponta da testa, headphones e começa a chamar a Lolis Regina. Ela, dada como só uma cadela cheia de amor para distribuir, acede ao chamamento e começa a puxar na direcção do homem, a abanar efusivamente o couto que lhe sobra de uma cauda outrora garbosa - e que ela própria tratou de destruir. Puxei a trela e mandei-a ficar e o homem "o que é que foi? Morde?" e eu a pensar "quem me dera" e a responder, fanfarrão e canastrão, "só morde quando calha". Continuámos, não lhe perguntei se acreditava em mim ou não, não me interessa. Não admito que, na rua, do nada, me chamem a cadela, como se eu não existisse, se eu não estivesse ali e ela fosse um objecto à disposição do público, pronta a obedecer a qualquer transeunte que lhe ache graça.

Carta de Apresentação

Boa tarde.

O meu nome é Diego e tenho, para além de conhecimentos, uma considerável experiência nesta área de trabalho, como os documentos e o currículo em anexo podem comprovar. Na verdade, nem sei por que me candidato ao cargo, visto que qualquer estagiário pode executar a função, embora com mais erros e mais dúvidas, por cerca de metade do meu preço. Ainda assim, envio a minha candidatura porque acredito que posso acrescentar alguma coisa à empresa, nomeadamente ao tão apregoado e diversas vezes sublinhado no vosso anúncio no Net Empregos "espírito de equipa". Sim, sou uma pessoa espirituosa, amiga do seu amigo, gosto de confraternizar e sei de sítios maravilhosos onde almoçar, jantar ou apenas beber um copo quando largamos do serviço. Creio que não exagero se disser que sou mesmo a pessoa ideal para fortalecer laços entre o vosso - que espero venha a ser nosso - grupo de trabalho. Camaradagem é comigo. Mais de uma década de redacções, revisões e edições podem não justificar a minha contratação e muito menos um salário compatível com a minha expectativa - já para não falar no meu modo de vida, que de frugal tem pouco (chego a gastar aos 15 euros num dia!). Porém, a minha alegria, os meus relatos do quotidiano junto à máquina de café, os meus comentários subtis sobre o fim-de-semana desportivo ou o meu carisma - amplamente comprovado em diversos guichets e repartições junto de funcionárias de meia-idade - podem perfeitamente fazer de mim a pessoa que procura para tornar este espaço de trabalho num lugar melhor, mais aprazível e, logo, mais capaz de responder às exigências de um mercado competitivo.

Aguardando a vossa resposta, com os melhores cumprimentos,

D.

segunda-feira, 30 de março de 2015

O procedimento

-Minha senhora, meu senhor... infelizmente, a situação do vosso filho não é a mais animadora
-Ai doutor - exclamou a mãe sem concretizar
-É verdade. O diagnóstico diz que, enfim, o rapaz tem um... prognóstico
-Ai que horror - disse a senhora
-É muito aborrecido, uma situação muito chata.
-Sem dúvida, muito chata - acrescentou o pai
-Naturalmente, realizámos mais exames, analisámos cui-da-do-sa-men-te cada contorno do prognóstico e detectámos, ao nível do primeiro palpite, um diagnóstico
-Ai credo
-É verdade. O mais grave é que não se trata de um diagnóstico qualquer: quis o destino que esse diagnóstico fosse precisamente... o nosso diagnóstico
-Isso é muito, muito chato - disse o pai
-Chatíssimo. É uma situação que ultrapassa vários limites. Muito desagradável. Vejam os senhores que andamos aqui às voltas. Uma equipa inteira, notem bem, para trás e para a frente, ora diagnóstico, ora prognóstico... sendo que, de cada vez que andam para trás, estão a andar para a frente; de cada vez que andam para a frente, estão a andar para trás. Enfim, andam o dobro daquilo que andam. É uma coisa que cansa.
-Evidentemente, naturalmente. Ó doutor, se soubéssemos que era para isto, não tínhamos vindo ao hospital. Tínhamos antes ido de férias.
-Não, não, não não... nem pensar. Fizeram muito bem vir ao hospital. É bom vir ao hospital. Além disso, nós estamos preparados
-Ai, que bom - disse a mãe
-Sim, nós estudámos medicina. Aprendemos uma variedade de coisas
-Ai, que bom, que bom - insistiu a senhora
-Foi, aliás, com base numa pequena parte dessa variedade de coisas - não muito pequena, mas pequena o suficiente - que eu pensei e acabei por concluir e depois tomar uma decisão em conformidade
-É todo um procedimento - disse o pai
-É complexo, sim. Prefiro não entrar em detalhes.
-Deixa o doutor explicar
-Bom, então decidi - e fi-lo com o total apoio da minha equipa, que continua para trás e para a frente e a quem estou muito grato - dizia eu que decidi dar uma vacina ao rapaz
-Ai, vacinas é bom
-Também gosto, também gosto
-Não é uma simples vacina: é uma vacina que previne - notem: previne! - futuros diagnósticos
-Bravo, doutor
-Brilhante. Nunca me passaria pela cabeça
-Foi precisamente para isto que eu estudei medicina
-E acha que resulta, doutor?
-Eu acredito que sim. Acredito que sim. O rapaz pode continuar a ter coisas, claro. Uma panóplia quase infinita de coisas, não lhe estamos a amputar nada. O que é que nunca mais ninguém vai saber do que se trata e, assim, lidaremos todos muito melhor com a situação. Isto é o que eu penso.
-Concordo absolutamente. Vamos embora.

terça-feira, 24 de março de 2015

Longevidades

Gosto quando as pessoas morrem dentro dos limites do seu direito natural de se irem embora. Faz-me sentir respeitado. A morte é um absurdo, que fique claro. Em qualquer circunstância, um absurdo. É igualmente um destino que os homens acataram há já muito tempo e que não voltaram a desafiar. Aceitou-se unanimemente que morremos todos mas eu olho e, agora mesmo, estamos vivos mais de sete mil milhões e eu recuso-me a perder a esperança de que, de entre tanta gente, não haja um ou dez ou cem ou até talvez dez mil que recusem o absurdo da morte e se mantenham vivos, contrariando perpetuamente as unanimidades, as tradições e o desperdício. Indefinidamente vivos. Nem tem de ser ser para sempre, só precisa de ser exagerado, para marcar uma posição. Dizem que na China havia um mestre taoísta que viveu mais de duzentos e cinquenta anos. É pouco, se pensarmos que escreveram na Bíblia sobre pessoas que quase chegaram aos mil - que continua a ser pouco. A não ser que sejas poeta. Sei de poetas que morreram e sobreviveram até à morte das línguas-mães dos seus poemas. Um poeta pode morrer descansado, desde que respeite os limites do seu direito natural de se ir embora.

terça-feira, 17 de março de 2015

Team building

Ia a sair de casa com a Lolis Regina e pensei, como penso todos os dias à mesma hora na execução do mesmo ritual, "ora... cão, casaco, sapatos... ah não me posso esquecer da chave". Enrolei um saquinho, enfiei-o no bolso de trás e pus os óculos de sol - pela manhã e mesmo que não haja sol não consigo suportar este excesso de luz, assim de repente e todo de uma vez - mas os óculos estavam embaciados. Tirei-os, limpei-os, voltei a pô-los, mandei a cadela sair e sentar-se, já com a trela posta, e fechei a porta. Foi então que um tonitruante "foda-se!" ressoou na minha cabeça. Sem carteira nem telefone - o meu plano era simples: passear o animal durante três minutos, o suficiente para que se aliviasse, e a seguir regressar a casa, dar-lhe de comer e tomar eu próprio o pequeno-almoço (um plano que não exige mais do que uma par de sapatilhas, um casaco, uns óculos de sol e as tais chaves de casa, para além da cachorra, que é um elemento fundamental) -, vi-me reduzido à condição de pessoa temporariamente sem-abrigo. As duas horas seguintes foram vividas em espera, deambulando pela Feira da Ladra e creio que os laços que existiam entre mim e a Lolita se estreitaram - depois de duas horas de fome e sem tecto, temos agora uma relação mais forte.

O casaco

(De casaco vestido, a arranjar-se para sair - hoje tem um jantar.)

-Olha, o que é que achas? Estou bem?
-Hum?... Sim, 'tá cool.
-E o casaco?...
-É fixe.
-Não achas que está assim... meio velhinho?
-Merhm... bom, sim... parece um bocadinho velhinho.
-Como assim?
-Como... como assim?
-Velhinho como?
-Babe, velhinho tipo... um pouco gasto. Não parece muito novo.

(A despir o casaco, amuada)

-Opá, fogo, tu...
-Mas... tu perguntaste, eu só disse...
-És sempre a mesma coisa. Gosto bué deste casaco.
-... não é como se tivesse sido eu a envelhecer o casaco, quer dizer...

(Minutos mais tarde, enquanto lavo a loiça.)

-Olha e este? Achas que fica bem?
-Mehrm... o que é que... o que é que tu achas?
-Eu é que estou a perguntar.
-Acho que sim, acho óptimo.
-Estás a mentir. Estás a dizer isso só para eu ficar contente.
-Não, não... a sério. Gosto desse casaco.
-O jantar é na Almirante Reis, também não preciso de ir toda tcharan...
-Babe, esse casaco... isso funciona em qualquer circunstância, onde quer que seja... desde que não seja Verão ou assim.
-Hum.

(Minutos mais tarde, mesmo antes de sair, despindo o segundo casaco.)

-Não... Isto assim não. Vou levar o outro, só desta vez. Gosto mais. Até logo *schuac*

sexta-feira, 6 de março de 2015

O aniversário

Fui tendo os meus amores pela vida fora. Da bola de futebol à guitarra, das adidas aos cães, da vista sobre o Tejo às viagens para Sul, as paixões foram-se acumulando, quase sempre foram crescendo. Há quem diga que não há amor como o primeiro. Eu diria que não há amores iguais. Mas há alguns que fazem doer mais quando tudo acaba. O Público foi um dos meus grandes amores e foi a relação mais longa que tive até hoje: 14 anos e meio de vida difícil. Difícil mas, no entanto, no dia em saí do trabalho pela última vez, cheguei ao metro a chorar (foi tão embaraçoso: as pessoas olhavam e eu sentia-me ridículo ao ponto de me rir e não parava de chorar, porque não dava, porque aquela despedida foi demasiado triste) - e nunca mais consegui voltar àquela redacção para visitar ex-camaradas ou, sequer, para ir buscar o meu caixote pessoal ou o computador que me pertencia - ficou lá tudo. Não foi por falta saudades, é porque ainda magoa um bocadinho. Não é fácil explicar, mas o meu trabalho foi a casa onde eu cresci (tinha 18 anos no dia em que lá entrei pela primeira vez, pensei que ia fazer um biscate de três semanas - passei lá quase metade da minha vida). O Público faz hoje 25 anos e 14 deles foram passados comigo. É muito tempo.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

A importância do poder negocial num quotidiano pouco estimulante

A minha vida não é assim tão excitante. Agora que acabei a formação de Alemão e deixei, talvez para sempre, de atravessar Lisboa a bordo do 711 em direcção à Damaia - que saudades de passar em frente ao Tribunal de Monsanto -, os meus dias voltaram à rotina habitual. Levar a cachorra à rua, a ocasional lavagem de loiça e de roupa - estou a ficar especialista na primeira -, ler um pouco, escrever um pouco, conversar no facebook, ler notícias, ouvir músicas, tocar músicas. Não é uma vida dura, mas o tempo passa mais rápido do que pode parecer. No meio de tantas micro-tarefas, de tanto gesto insignificante, o dia vai-se e fico com a sensação de que não fiz nada importante ou de satisfatório. O ponto alto das minhas tardes normalmente é atingido quando me lembro de que tenho varanda e lá vou eu olhar para o rio. Tenho a certeza de que esta vista já impediu muita insanidade.

Este ritmo aparentemente tranquilo mas de cadência rápida - não dou por mim a ficar mais velho e acabo por me surpreender quando faço anos outra vez (como assim "fazer anos"?! Eu acabei de fazer isso ainda agora, homem...) - acaba por ser iluminado por pequenos momentos de brilho, um ou outro jantar, uma ou outra saída, os passeios pela cidade ou pela costa do Sul, um concerto a que se vai, um jogo de futebol a que se assiste. São desvios pequenos à rotina que reconfortam. No outro dia, véspera de Carnaval, fui ver o Bonga. Foi um momento especial e senti uma estranha comoção quando o vi subir ao palco, ele, Bonga, uma espécie de mito da minha infância, a lenda angolana. Foi tudo óptimo nessa noite. Há um momento que guardarei para sempre: aquele em que um grande amigo, que foi também comigo, meu me contou que festejou um aniversário de namoro com uma ida ao Viking e que, a certo ponto, ele e a namorada acabaram no palco com a stripper. A história tinha mais detalhes, mas prefiro guardá-los. Esse meu amigo não é tarado nem nada disso, é até muito bom rapaz. Não falámos desde essa noite - mas apenas por coincidência. A namorada, que estava com ele, confirmou tudo. Com um sorriso largo e franco.

Hoje será mais um dia com detalhe especial. Tenho um jantar de aniversário, ainda nem sei onde. Mas há-de ser bom. Seja como for, o momento alto já não foi a contemplação do Tejo - que, aliás, ainda consigo ver graças ao alargamento dos dias. Não aconteceu nada de extraordinário. Não passou de uma ida à mercearia com um final feliz. Na mercearia aqui debaixo de minha casa, estabelecimento gerido por uma irmandade indiana ou paquistanesa ou bangladeshiana, creio eu, costumo comprar papel higiénico. Dantes comprava mais coisas: manteiga, água mineral e latas de atum. Porém, com o tempo fui ficando cansado dos preços exorbitantes de certos produtos. Certa vez pediram-me dois euros e meio por uma embalagem de Mimosa de 250g. Pousei a embalagem e disse-lhe "você é maluco". Saí e fui ao Ali, que é do Bangladesh, acho eu, e que fica mais abaixo e tem preços mais honestos. Há uns dias, voltei à tal mercearia para comprar um garrafão de água. "Um euro e vinte" pediu-me ele. Pousei o garrafão e lá fui eu ao Ali. Hoje voltei a entrar na mercearia e, quando estava a pagar, disse-me assim o senhor "quanto você paga garafa gás?" - costumo comprar o gás no Ali e ele sabe disso - e eu "25, porquê?" e ele "eu faz mais barato: 24,50". "Leva lá acima a casa?", perguntei eu. "Sim". Desde o concerto do Bonga que não me sentia tão contente.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Lugares distantes

Tínhamos lanchado muito bem numa pastelaria da Baixa, a tarde ia ficando cada vez mais fria e começou a chuviscar quando caminhávamos para o carro. Até que eu perguntei "onde é que está mesmo o carro?" e ela disse "ui... tens muito que andar,meu menino" e eu, fazendo uma pausa a fingir-me pensativo, concluí "está onde Judas perdeu as botas". Ela, com lentidão e um sorriso malandro, acrescentou "está no cu de Judas". Rimo-nos bastante. O caminho, realmente longo, acabou por parecer mais curto mesmo que tenhamos ficado calados até ela abrir a porta do carro. Eu ia entretido a pensar na nossa troca de parvoíces e acho que ela ia a pensar no mesmo. Estávamos os dois sorridentes como quem tem qualquer coisa engraçada para dizer mas se está a conter, praticamente a morder os lábios para que a boca não se abra. Eu entrei, sentei-me e não resisti mais: "estava, de facto, no caralho mais velho" e ela riu-se. "Porém, há quem defenda que se encontrava em Santa Cona do Assobio". Quando arrancámos, fomos indagando acerca destas estranhas terras longínquas que não vêm nos mapas e onde nunca ninguém foi mas onde já muitos tiveram amigos ou familiares ou perderam objectos, até.

Jantar de São Valentim

O Manuel Cruz escreveu "o amor dá-me tesão". A mim, dá-me fome normalmente. Quando era mais novo perdia o apetite por causa dos nervos e do entusiasmo e, no fim, dava por mim esfomeado. Ontem foi por causa do picante. Fomos ao goês da Rua do Zaire. Agora o Zaire chama-se Congo e quando passo naquela rua lembro-me sempre do coro dos Irmãos Catita na Lourenço Marques, daquele cândido "hoje é Maputo". Mandámos vir dois menus São Valentim porque fomos com outro casal, são nossos amigos. Saía mais barato, pareceu-me um bom plano. Até às entradas estava tudo bem. Mas depois a comida a sério estava brava, até ardia na língua. Era um arroz não sei quê, primeiro. Toda a gente adorou, eu não achei grande piada. Entretanto, íamos vendo o resultado do Sporting e estava sempre zero a zero. Já toda a gente tinha acabado o arroz, menos eu. O senhor queria levantar os pratos e trazer o resto das travessas - o menu tinha muita coisa - e continuava eu a comer com o meu vagar. Gosto de levar o meu tempo. E nisto, é golo do Belenenses e eu, naturalmente, pouso o talher e faço assim aquela ginga dançante de quem fica muito contente com qualquer coisa, como se tivesse atingido um objectivo na vida com uma pontinha de sorte. O senhor que ia levantar os pratos diz "quando você acabar, já o Sporting está a ganhar" e eu pensei para mim "conto acabar ainda esta semana" mas não disse ou então disse só às pessoas da minha mesa. Depois veio qualquer coisa vindalho e eu sempre tinha visto nos outros indianos "vindal hoo" e pensei que era assim que se dizia: vindal - hu. Mas não, afinal diz-se mesmo "vindalho", é uma corruptela de "vinha d'alhos". Primeiro fiquei desapontado com o nome, que perdeu toda a magia e se tornou rude; a seguir, fiquei desconsolado com o prato propriamente dito, que também não me soube a grande coisa.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

O concurso

Era ambiciosa e tinha um espírito empreendedor quase imparável, a Ana Rita. No 5.º ano já era sub-delegada de turma; no 7.º, sonhava ser presidente da Associação de Estudantes. O sonho ficou por cumprir: fez listas, concorreu, nunca ganhou. Mas também não desistiu. A vontade de intervir, de fazer mexer, de provocar, de agitar, levaram-na a formar uma comissão de festas independente. Como não era alinhada com o poder, via as suas propostas invariavelmente recusadas. Mas um dia conseguiu. Eu acredito que tenha vencido pelo cansaço dos outros, os que mandavam na Associação. Mas isso não é relevante. O que importa é que conseguiu. O 9.º ano estava a chegar ao fim. Na altura, a Ana Rita já tinha namorado. Era o Flávio. Eu não tinha namorada, mas também não gostava da Ana Rita, por isso o namoro dela não me afectava. Andavam de mãos dadas pelos corredores da escola e iam dar beijinhos e às vezes acho que se apalpavam atrás do pavilhão D, onde os mais rebeldes fumavam cigarros. Não sei se eles fumavam. Estavam sempre aos beijos, não deviam fumar. A proposta dela era simples: fazer um concurso de homens-estátua. Ela tinha ido a Londres com os pais e viu lá artistas de rua, aquilo ficou-lhe na cabeça. A Associação de Estudantes aceitou, o Conselho Directivo aprovou e começaram os preparativos. Marcou-se uma data, abriram-se inscrições, reservou-se o ginásio para a mostra pública. Na altura, pensei que ninguém fosse dar importância, mas enganei-me. Houve mais de vinte concorrentes. Viveram-se duas ou três semanas estranhas lá escola. Passávamos pelo campo de basket, pelo buffet, pelo polivalente e havia sempre alguém quieto, estático, só mexiam as pálpebras. Normalmente, estavam sozinhos. Eu próprio cheguei a sentir-me tentado mas acabei por perceber que não tinha disciplina para tanto. Chegado o dia do evento, o ginásio encheu-se de gente. Os concorrentes entraram depois dos discursos do presidente do Conselho Directivo e da própria Ana Rita, que elogiou os participantes e agradeceu a oportunidade de organizar qualquer coisa na vida. E depois fez-se silêncio. Lá estavam eles, quietos, no meio do ginásio. Foi bonito durante, talvez, os primeiros dois minutos. Mas depois começou a tornar-se maçador e a seguir cansativo, o público começou a abstrair-se daquele espectáculo bizarro de miúdos quietinhos a fazer pose. Começou o burburinho, os professores olharam-nos com severidade, depois vieram as risadas e depois os gritos, a galhofa, as conversas entusiasmados dos próprios professores que, por fim, já se riam à gargalhada tal como todos os outros. Só não riam os concorrentes - porque não podiam, uma vez que o objectivo era estarem quietos - e a Ana Rita. Houve quem começasse a sair, a coisa já não tinha interesse, tinham passado mais de vinte minutos e ainda nenhum dos concorrentes se tinha mexido. E a Ana Rita com aquela cara com que as pessoas ficam quando assistem ao seu próprio fracasso, quando perdem a esperança, quando se sentem frustradas. Às tantas, saiu porta fora. Acho que estava a chorar. Também não fiquei para ver, nem sei quem ganhou. Hoje, quando passo na Rua Augusta, não consigo evitar pensar que talvez a Ana Rita tivesse razão, talvez aquilo não fosse assim tão disparatado - lá estão os homens e mulheres-estátua, nas suas poses, nos seus pedestais, nas suas figuras, a ficarem quietos e a serem fotografados e a ganharem moedas de vinte e cinquenta cêntimos atirados por alemães, por italianos, por japoneses.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

1.

Então, estávamos no Sabotage. Tive de ir à casa-de-banho. Tínhamos jantado, depois fomos beber umas cervejas, por fim decidimos ouvir música. Em bares, prefiro sempre a privada em vez de usar os urinóis. Dá-me uma refrescante ilusão de higiene ou, no mínimo, alguma esperança - "talvez aqui seja mais asseado" pensava eu enquanto mijava e, nesse momento, entrou um tipo por ali adentro e vomitou-se todo, nos urinóis. Eu estava de porta aberta, assisti a tudo olhando por cima do ombro e sem dizer uma palavra. Quando acabou de cuspir o último fio de baba, tentou erguer-se com a dignidade possível. Penso que nem deu por mim. Mexia-se devagar, lá fora estava a dar Kinks e eu a pensar "se fosse no Jamaica, estava a dar Heroes del Silencio". Então o tal tipo carregou no botão do autoclismo do urinol e começou a lavar-se, primeiro as mãos, depois a boca, e eu a pensar "é normal, isto é tudo alumínio, uma pessoa confunde-se". Fechei a braguilha, lavei as mãos - no lavatório -, saí e estava a dar Jimmy Hendrix. Cheguei ao pé dela e disse-lhe ao ouvido "já tenho nome para o blogue", "o quê?!" disse ela e eu "até tenho subtítulo!" e comecei a tocar air guitar, mas à canhoto por uma questão de rigor.