quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

A importância do poder negocial num quotidiano pouco estimulante

A minha vida não é assim tão excitante. Agora que acabei a formação de Alemão e deixei, talvez para sempre, de atravessar Lisboa a bordo do 711 em direcção à Damaia - que saudades de passar em frente ao Tribunal de Monsanto -, os meus dias voltaram à rotina habitual. Levar a cachorra à rua, a ocasional lavagem de loiça e de roupa - estou a ficar especialista na primeira -, ler um pouco, escrever um pouco, conversar no facebook, ler notícias, ouvir músicas, tocar músicas. Não é uma vida dura, mas o tempo passa mais rápido do que pode parecer. No meio de tantas micro-tarefas, de tanto gesto insignificante, o dia vai-se e fico com a sensação de que não fiz nada importante ou de satisfatório. O ponto alto das minhas tardes normalmente é atingido quando me lembro de que tenho varanda e lá vou eu olhar para o rio. Tenho a certeza de que esta vista já impediu muita insanidade.

Este ritmo aparentemente tranquilo mas de cadência rápida - não dou por mim a ficar mais velho e acabo por me surpreender quando faço anos outra vez (como assim "fazer anos"?! Eu acabei de fazer isso ainda agora, homem...) - acaba por ser iluminado por pequenos momentos de brilho, um ou outro jantar, uma ou outra saída, os passeios pela cidade ou pela costa do Sul, um concerto a que se vai, um jogo de futebol a que se assiste. São desvios pequenos à rotina que reconfortam. No outro dia, véspera de Carnaval, fui ver o Bonga. Foi um momento especial e senti uma estranha comoção quando o vi subir ao palco, ele, Bonga, uma espécie de mito da minha infância, a lenda angolana. Foi tudo óptimo nessa noite. Há um momento que guardarei para sempre: aquele em que um grande amigo, que foi também comigo, meu me contou que festejou um aniversário de namoro com uma ida ao Viking e que, a certo ponto, ele e a namorada acabaram no palco com a stripper. A história tinha mais detalhes, mas prefiro guardá-los. Esse meu amigo não é tarado nem nada disso, é até muito bom rapaz. Não falámos desde essa noite - mas apenas por coincidência. A namorada, que estava com ele, confirmou tudo. Com um sorriso largo e franco.

Hoje será mais um dia com detalhe especial. Tenho um jantar de aniversário, ainda nem sei onde. Mas há-de ser bom. Seja como for, o momento alto já não foi a contemplação do Tejo - que, aliás, ainda consigo ver graças ao alargamento dos dias. Não aconteceu nada de extraordinário. Não passou de uma ida à mercearia com um final feliz. Na mercearia aqui debaixo de minha casa, estabelecimento gerido por uma irmandade indiana ou paquistanesa ou bangladeshiana, creio eu, costumo comprar papel higiénico. Dantes comprava mais coisas: manteiga, água mineral e latas de atum. Porém, com o tempo fui ficando cansado dos preços exorbitantes de certos produtos. Certa vez pediram-me dois euros e meio por uma embalagem de Mimosa de 250g. Pousei a embalagem e disse-lhe "você é maluco". Saí e fui ao Ali, que é do Bangladesh, acho eu, e que fica mais abaixo e tem preços mais honestos. Há uns dias, voltei à tal mercearia para comprar um garrafão de água. "Um euro e vinte" pediu-me ele. Pousei o garrafão e lá fui eu ao Ali. Hoje voltei a entrar na mercearia e, quando estava a pagar, disse-me assim o senhor "quanto você paga garafa gás?" - costumo comprar o gás no Ali e ele sabe disso - e eu "25, porquê?" e ele "eu faz mais barato: 24,50". "Leva lá acima a casa?", perguntei eu. "Sim". Desde o concerto do Bonga que não me sentia tão contente.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Lugares distantes

Tínhamos lanchado muito bem numa pastelaria da Baixa, a tarde ia ficando cada vez mais fria e começou a chuviscar quando caminhávamos para o carro. Até que eu perguntei "onde é que está mesmo o carro?" e ela disse "ui... tens muito que andar,meu menino" e eu, fazendo uma pausa a fingir-me pensativo, concluí "está onde Judas perdeu as botas". Ela, com lentidão e um sorriso malandro, acrescentou "está no cu de Judas". Rimo-nos bastante. O caminho, realmente longo, acabou por parecer mais curto mesmo que tenhamos ficado calados até ela abrir a porta do carro. Eu ia entretido a pensar na nossa troca de parvoíces e acho que ela ia a pensar no mesmo. Estávamos os dois sorridentes como quem tem qualquer coisa engraçada para dizer mas se está a conter, praticamente a morder os lábios para que a boca não se abra. Eu entrei, sentei-me e não resisti mais: "estava, de facto, no caralho mais velho" e ela riu-se. "Porém, há quem defenda que se encontrava em Santa Cona do Assobio". Quando arrancámos, fomos indagando acerca destas estranhas terras longínquas que não vêm nos mapas e onde nunca ninguém foi mas onde já muitos tiveram amigos ou familiares ou perderam objectos, até.

Jantar de São Valentim

O Manuel Cruz escreveu "o amor dá-me tesão". A mim, dá-me fome normalmente. Quando era mais novo perdia o apetite por causa dos nervos e do entusiasmo e, no fim, dava por mim esfomeado. Ontem foi por causa do picante. Fomos ao goês da Rua do Zaire. Agora o Zaire chama-se Congo e quando passo naquela rua lembro-me sempre do coro dos Irmãos Catita na Lourenço Marques, daquele cândido "hoje é Maputo". Mandámos vir dois menus São Valentim porque fomos com outro casal, são nossos amigos. Saía mais barato, pareceu-me um bom plano. Até às entradas estava tudo bem. Mas depois a comida a sério estava brava, até ardia na língua. Era um arroz não sei quê, primeiro. Toda a gente adorou, eu não achei grande piada. Entretanto, íamos vendo o resultado do Sporting e estava sempre zero a zero. Já toda a gente tinha acabado o arroz, menos eu. O senhor queria levantar os pratos e trazer o resto das travessas - o menu tinha muita coisa - e continuava eu a comer com o meu vagar. Gosto de levar o meu tempo. E nisto, é golo do Belenenses e eu, naturalmente, pouso o talher e faço assim aquela ginga dançante de quem fica muito contente com qualquer coisa, como se tivesse atingido um objectivo na vida com uma pontinha de sorte. O senhor que ia levantar os pratos diz "quando você acabar, já o Sporting está a ganhar" e eu pensei para mim "conto acabar ainda esta semana" mas não disse ou então disse só às pessoas da minha mesa. Depois veio qualquer coisa vindalho e eu sempre tinha visto nos outros indianos "vindal hoo" e pensei que era assim que se dizia: vindal - hu. Mas não, afinal diz-se mesmo "vindalho", é uma corruptela de "vinha d'alhos". Primeiro fiquei desapontado com o nome, que perdeu toda a magia e se tornou rude; a seguir, fiquei desconsolado com o prato propriamente dito, que também não me soube a grande coisa.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

O concurso

Era ambiciosa e tinha um espírito empreendedor quase imparável, a Ana Rita. No 5.º ano já era sub-delegada de turma; no 7.º, sonhava ser presidente da Associação de Estudantes. O sonho ficou por cumprir: fez listas, concorreu, nunca ganhou. Mas também não desistiu. A vontade de intervir, de fazer mexer, de provocar, de agitar, levaram-na a formar uma comissão de festas independente. Como não era alinhada com o poder, via as suas propostas invariavelmente recusadas. Mas um dia conseguiu. Eu acredito que tenha vencido pelo cansaço dos outros, os que mandavam na Associação. Mas isso não é relevante. O que importa é que conseguiu. O 9.º ano estava a chegar ao fim. Na altura, a Ana Rita já tinha namorado. Era o Flávio. Eu não tinha namorada, mas também não gostava da Ana Rita, por isso o namoro dela não me afectava. Andavam de mãos dadas pelos corredores da escola e iam dar beijinhos e às vezes acho que se apalpavam atrás do pavilhão D, onde os mais rebeldes fumavam cigarros. Não sei se eles fumavam. Estavam sempre aos beijos, não deviam fumar. A proposta dela era simples: fazer um concurso de homens-estátua. Ela tinha ido a Londres com os pais e viu lá artistas de rua, aquilo ficou-lhe na cabeça. A Associação de Estudantes aceitou, o Conselho Directivo aprovou e começaram os preparativos. Marcou-se uma data, abriram-se inscrições, reservou-se o ginásio para a mostra pública. Na altura, pensei que ninguém fosse dar importância, mas enganei-me. Houve mais de vinte concorrentes. Viveram-se duas ou três semanas estranhas lá escola. Passávamos pelo campo de basket, pelo buffet, pelo polivalente e havia sempre alguém quieto, estático, só mexiam as pálpebras. Normalmente, estavam sozinhos. Eu próprio cheguei a sentir-me tentado mas acabei por perceber que não tinha disciplina para tanto. Chegado o dia do evento, o ginásio encheu-se de gente. Os concorrentes entraram depois dos discursos do presidente do Conselho Directivo e da própria Ana Rita, que elogiou os participantes e agradeceu a oportunidade de organizar qualquer coisa na vida. E depois fez-se silêncio. Lá estavam eles, quietos, no meio do ginásio. Foi bonito durante, talvez, os primeiros dois minutos. Mas depois começou a tornar-se maçador e a seguir cansativo, o público começou a abstrair-se daquele espectáculo bizarro de miúdos quietinhos a fazer pose. Começou o burburinho, os professores olharam-nos com severidade, depois vieram as risadas e depois os gritos, a galhofa, as conversas entusiasmados dos próprios professores que, por fim, já se riam à gargalhada tal como todos os outros. Só não riam os concorrentes - porque não podiam, uma vez que o objectivo era estarem quietos - e a Ana Rita. Houve quem começasse a sair, a coisa já não tinha interesse, tinham passado mais de vinte minutos e ainda nenhum dos concorrentes se tinha mexido. E a Ana Rita com aquela cara com que as pessoas ficam quando assistem ao seu próprio fracasso, quando perdem a esperança, quando se sentem frustradas. Às tantas, saiu porta fora. Acho que estava a chorar. Também não fiquei para ver, nem sei quem ganhou. Hoje, quando passo na Rua Augusta, não consigo evitar pensar que talvez a Ana Rita tivesse razão, talvez aquilo não fosse assim tão disparatado - lá estão os homens e mulheres-estátua, nas suas poses, nos seus pedestais, nas suas figuras, a ficarem quietos e a serem fotografados e a ganharem moedas de vinte e cinquenta cêntimos atirados por alemães, por italianos, por japoneses.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

1.

Então, estávamos no Sabotage. Tive de ir à casa-de-banho. Tínhamos jantado, depois fomos beber umas cervejas, por fim decidimos ouvir música. Em bares, prefiro sempre a privada em vez de usar os urinóis. Dá-me uma refrescante ilusão de higiene ou, no mínimo, alguma esperança - "talvez aqui seja mais asseado" pensava eu enquanto mijava e, nesse momento, entrou um tipo por ali adentro e vomitou-se todo, nos urinóis. Eu estava de porta aberta, assisti a tudo olhando por cima do ombro e sem dizer uma palavra. Quando acabou de cuspir o último fio de baba, tentou erguer-se com a dignidade possível. Penso que nem deu por mim. Mexia-se devagar, lá fora estava a dar Kinks e eu a pensar "se fosse no Jamaica, estava a dar Heroes del Silencio". Então o tal tipo carregou no botão do autoclismo do urinol e começou a lavar-se, primeiro as mãos, depois a boca, e eu a pensar "é normal, isto é tudo alumínio, uma pessoa confunde-se". Fechei a braguilha, lavei as mãos - no lavatório -, saí e estava a dar Jimmy Hendrix. Cheguei ao pé dela e disse-lhe ao ouvido "já tenho nome para o blogue", "o quê?!" disse ela e eu "até tenho subtítulo!" e comecei a tocar air guitar, mas à canhoto por uma questão de rigor.