segunda-feira, 30 de março de 2015

O procedimento

-Minha senhora, meu senhor... infelizmente, a situação do vosso filho não é a mais animadora
-Ai doutor - exclamou a mãe sem concretizar
-É verdade. O diagnóstico diz que, enfim, o rapaz tem um... prognóstico
-Ai que horror - disse a senhora
-É muito aborrecido, uma situação muito chata.
-Sem dúvida, muito chata - acrescentou o pai
-Naturalmente, realizámos mais exames, analisámos cui-da-do-sa-men-te cada contorno do prognóstico e detectámos, ao nível do primeiro palpite, um diagnóstico
-Ai credo
-É verdade. O mais grave é que não se trata de um diagnóstico qualquer: quis o destino que esse diagnóstico fosse precisamente... o nosso diagnóstico
-Isso é muito, muito chato - disse o pai
-Chatíssimo. É uma situação que ultrapassa vários limites. Muito desagradável. Vejam os senhores que andamos aqui às voltas. Uma equipa inteira, notem bem, para trás e para a frente, ora diagnóstico, ora prognóstico... sendo que, de cada vez que andam para trás, estão a andar para a frente; de cada vez que andam para a frente, estão a andar para trás. Enfim, andam o dobro daquilo que andam. É uma coisa que cansa.
-Evidentemente, naturalmente. Ó doutor, se soubéssemos que era para isto, não tínhamos vindo ao hospital. Tínhamos antes ido de férias.
-Não, não, não não... nem pensar. Fizeram muito bem vir ao hospital. É bom vir ao hospital. Além disso, nós estamos preparados
-Ai, que bom - disse a mãe
-Sim, nós estudámos medicina. Aprendemos uma variedade de coisas
-Ai, que bom, que bom - insistiu a senhora
-Foi, aliás, com base numa pequena parte dessa variedade de coisas - não muito pequena, mas pequena o suficiente - que eu pensei e acabei por concluir e depois tomar uma decisão em conformidade
-É todo um procedimento - disse o pai
-É complexo, sim. Prefiro não entrar em detalhes.
-Deixa o doutor explicar
-Bom, então decidi - e fi-lo com o total apoio da minha equipa, que continua para trás e para a frente e a quem estou muito grato - dizia eu que decidi dar uma vacina ao rapaz
-Ai, vacinas é bom
-Também gosto, também gosto
-Não é uma simples vacina: é uma vacina que previne - notem: previne! - futuros diagnósticos
-Bravo, doutor
-Brilhante. Nunca me passaria pela cabeça
-Foi precisamente para isto que eu estudei medicina
-E acha que resulta, doutor?
-Eu acredito que sim. Acredito que sim. O rapaz pode continuar a ter coisas, claro. Uma panóplia quase infinita de coisas, não lhe estamos a amputar nada. O que é que nunca mais ninguém vai saber do que se trata e, assim, lidaremos todos muito melhor com a situação. Isto é o que eu penso.
-Concordo absolutamente. Vamos embora.

terça-feira, 24 de março de 2015

Longevidades

Gosto quando as pessoas morrem dentro dos limites do seu direito natural de se irem embora. Faz-me sentir respeitado. A morte é um absurdo, que fique claro. Em qualquer circunstância, um absurdo. É igualmente um destino que os homens acataram há já muito tempo e que não voltaram a desafiar. Aceitou-se unanimemente que morremos todos mas eu olho e, agora mesmo, estamos vivos mais de sete mil milhões e eu recuso-me a perder a esperança de que, de entre tanta gente, não haja um ou dez ou cem ou até talvez dez mil que recusem o absurdo da morte e se mantenham vivos, contrariando perpetuamente as unanimidades, as tradições e o desperdício. Indefinidamente vivos. Nem tem de ser ser para sempre, só precisa de ser exagerado, para marcar uma posição. Dizem que na China havia um mestre taoísta que viveu mais de duzentos e cinquenta anos. É pouco, se pensarmos que escreveram na Bíblia sobre pessoas que quase chegaram aos mil - que continua a ser pouco. A não ser que sejas poeta. Sei de poetas que morreram e sobreviveram até à morte das línguas-mães dos seus poemas. Um poeta pode morrer descansado, desde que respeite os limites do seu direito natural de se ir embora.

terça-feira, 17 de março de 2015

Team building

Ia a sair de casa com a Lolis Regina e pensei, como penso todos os dias à mesma hora na execução do mesmo ritual, "ora... cão, casaco, sapatos... ah não me posso esquecer da chave". Enrolei um saquinho, enfiei-o no bolso de trás e pus os óculos de sol - pela manhã e mesmo que não haja sol não consigo suportar este excesso de luz, assim de repente e todo de uma vez - mas os óculos estavam embaciados. Tirei-os, limpei-os, voltei a pô-los, mandei a cadela sair e sentar-se, já com a trela posta, e fechei a porta. Foi então que um tonitruante "foda-se!" ressoou na minha cabeça. Sem carteira nem telefone - o meu plano era simples: passear o animal durante três minutos, o suficiente para que se aliviasse, e a seguir regressar a casa, dar-lhe de comer e tomar eu próprio o pequeno-almoço (um plano que não exige mais do que uma par de sapatilhas, um casaco, uns óculos de sol e as tais chaves de casa, para além da cachorra, que é um elemento fundamental) -, vi-me reduzido à condição de pessoa temporariamente sem-abrigo. As duas horas seguintes foram vividas em espera, deambulando pela Feira da Ladra e creio que os laços que existiam entre mim e a Lolita se estreitaram - depois de duas horas de fome e sem tecto, temos agora uma relação mais forte.

O casaco

(De casaco vestido, a arranjar-se para sair - hoje tem um jantar.)

-Olha, o que é que achas? Estou bem?
-Hum?... Sim, 'tá cool.
-E o casaco?...
-É fixe.
-Não achas que está assim... meio velhinho?
-Merhm... bom, sim... parece um bocadinho velhinho.
-Como assim?
-Como... como assim?
-Velhinho como?
-Babe, velhinho tipo... um pouco gasto. Não parece muito novo.

(A despir o casaco, amuada)

-Opá, fogo, tu...
-Mas... tu perguntaste, eu só disse...
-És sempre a mesma coisa. Gosto bué deste casaco.
-... não é como se tivesse sido eu a envelhecer o casaco, quer dizer...

(Minutos mais tarde, enquanto lavo a loiça.)

-Olha e este? Achas que fica bem?
-Mehrm... o que é que... o que é que tu achas?
-Eu é que estou a perguntar.
-Acho que sim, acho óptimo.
-Estás a mentir. Estás a dizer isso só para eu ficar contente.
-Não, não... a sério. Gosto desse casaco.
-O jantar é na Almirante Reis, também não preciso de ir toda tcharan...
-Babe, esse casaco... isso funciona em qualquer circunstância, onde quer que seja... desde que não seja Verão ou assim.
-Hum.

(Minutos mais tarde, mesmo antes de sair, despindo o segundo casaco.)

-Não... Isto assim não. Vou levar o outro, só desta vez. Gosto mais. Até logo *schuac*

sexta-feira, 6 de março de 2015

O aniversário

Fui tendo os meus amores pela vida fora. Da bola de futebol à guitarra, das adidas aos cães, da vista sobre o Tejo às viagens para Sul, as paixões foram-se acumulando, quase sempre foram crescendo. Há quem diga que não há amor como o primeiro. Eu diria que não há amores iguais. Mas há alguns que fazem doer mais quando tudo acaba. O Público foi um dos meus grandes amores e foi a relação mais longa que tive até hoje: 14 anos e meio de vida difícil. Difícil mas, no entanto, no dia em saí do trabalho pela última vez, cheguei ao metro a chorar (foi tão embaraçoso: as pessoas olhavam e eu sentia-me ridículo ao ponto de me rir e não parava de chorar, porque não dava, porque aquela despedida foi demasiado triste) - e nunca mais consegui voltar àquela redacção para visitar ex-camaradas ou, sequer, para ir buscar o meu caixote pessoal ou o computador que me pertencia - ficou lá tudo. Não foi por falta saudades, é porque ainda magoa um bocadinho. Não é fácil explicar, mas o meu trabalho foi a casa onde eu cresci (tinha 18 anos no dia em que lá entrei pela primeira vez, pensei que ia fazer um biscate de três semanas - passei lá quase metade da minha vida). O Público faz hoje 25 anos e 14 deles foram passados comigo. É muito tempo.