quarta-feira, 29 de abril de 2015

Salas de espera

Existe uma conspiração oculta para nos fazer sentir fracos quando estamos num hospital. Podemos estar saudáveis, isso não importa. É o hospital que nos tira as forças com a sua criptonite subtil. As televisões da sala de espera, com o som baixo o suficiente para que nada se entenda e alto quanto baste para que saibamos que estão ligadas, dão o Herman José gordo e feio e o Carlos Alberto Moniz feio e velho. As pessoas em redor não parecem doentes mas nota-se-lhes no olhar uma súplica constante "muda de canal", "mete os resumos da libertadores", "mete no axn, está a dar o Castle". Mudo de sala, o canal é outro. Neste recanto opressivo-depressivo a Luciana Abreu ri-se muito mas não se percebe o que ela diz, ouve-se apenas o burburinho da conversa que mantém com um convidado qualquer que desconheço. O João Baião também sorri com todo o profissionalismo, todo o sentido de missão. Não há cerveja, não se pode fumar. Os olhos em redor "epá mete um filme, porra", "muda para o fox life", "mete no youtube". O meu número surge no chamador de números. A minha ficha - vejo-a no ecrã do pentium 2, um policromático todo moderno - diz "diego armes sants" e eu digo "ó senhora, eu já pedi três vezes para emendarem o meu nome" e a senhora "olhe senhor diogo, eu aqui não posso fazer nada". Sento-me e deixo-me adoecer passivamente contemplando números 760 qualquer coisa qualquer coisa que dão cheques de 300 euros por mês para toda vida durante seis meses ou dois anos ou bêmedablius que uma pessoa depois não tem dinheiro para sustentar. E nem sei se estou à espera no sítio certo.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Crítica de cinema com sesta

Pus-me a ver o Ágora, já fora de horas, e devo ter adormecido por volta das três. Acordei às cinco, estava o Orestes a tentar converter a Hipátia mas não conseguiu, depois o gang do Cirilo apanhou-a e o Davus deu-lhe uma morte misericordiosa. Não sei o que aconteceu pelo meio, mas não deve ter sido importante. O Aménabar podia ter feito uma curta, na boa.

Crítica de cinema

Relatos Selvagens. As expectativas eram altas depois de ter ouvido tanto elogio, tanto comentário e tanto aconselhamento "tens de ver, tens de ver, tens de ver".
Mas começámos mal: achei o prólogo - o episódio do avião - fraco: a ideia é engraçada, mas está muito mal trabalhada. Tudo é previsível, parece quase feito à pressa, e é demasiado explícito em quase todas as linhas de diálogo, não deixando qualquer espaço para a interrogação ou para a surpresa. O episódio do veneno sofre do mesmo mal, embora chegue um bocadinho mais longe.
É no terceiro tomo que a coisa ganha dimensões dignas: a luta na estrada é um grande momento de cinema, com tudo certo, desde a presença do gore à psicologia do herói versus cobarde numa só pessoa.
Depois, com o homem dos carros rebocados e, a seguir, com o atropelamento, o filme entra numa espécie de velocidade de cruzeiro: tudo muito bem trabalhado, óptimos diálogos, situações bem encadeadas, personagens que ora perdem, ora ganham força; forças que mudam de lugar num verdadeiro exercício de questionar, de pôr em causa - um autêntico festival de bom cinema.
Mas o melhor estava guardado para o fim. Como é que ninguém me tinha falado do casamento? É extraordinário. Vale por todo o filme. Não fosse o início frágil, a destoar completamente de tudo o que vem a seguir, seria uma obra-prima este Relatos Selvagens.

7,5/10 (Adoro dar notas a coisas.)

Três viagens de metro

#1
Só para dizer que o Metro de Lisboa é a puta mais bem paga e incompetente e nojenta deste país e arredores. Vou comprar uma bicicleta, seus punheteiros, chulos dum cabrão, sempre a fazer greves e plenários e a perturbar a circulação, puta que os pariu.

#2
"Linha azul: existem perturbações na circulação. O tempo de espera será o do costume. Pedimos desculpa por não vos causar surpresa nem espanto, apenas nojo."

#3
"Linha azul: existem, naturalmente, perturbações na circulação. O tempo de espera será a merda de todos os dias e um dia destes alguém vai perder a cabeça e pegar fogo a esta putaria toda. Pedimos desculpa por lhe estragar o dia, todos os dias, sem folgas, feriados ou férias. Valide o seu bilhete cabeceando 18 vezes na máquina e fazendo o pino em seguida."

sábado, 25 de abril de 2015

Kong

Entrei na loja de animais eram umas cinco da tarde e disse "desculpe, precisava da sua ajuda... eu queria um kong, mas não estou a perceber muito bem como é que isto funciona ou qual será o mais adequado para ela". Por esta altura, já Lola Josefina se empleirava na perna da empregada, que se derretia "ai... ela é tão fofa... és tão querida... pu-pu-pu-pu". Várias pessoas me tinham falado do kong, que era um pequeno milagre, que até o cão mais agitado se concentra de tal forma no objecto que mais parece uma criança a dormir descansada, horas e horas a fio. Tive de interromper as festinhas "desculpe... o kong", "ah... tem aqui estes mais pequeninos" e eu "ó senhora, ela come isso em dez segundos. Já me comeu uma camisola e um casaco de cabedal. Essa borrachita para ela não é mais que um tremoço". Mostrou-me uns um pouco maiores e eu tentei explicar-lhe que Lolis, com este seu aspecto de brinquedo eléctrico manuseável, tem um apetite que mete respeito e uns dentes consideravelmente afiados. Mostrou-me outro, uma espécie de kong-sempre-em-pé e eu "mas o que é que isso faz?" e ela "então, o cão deita-o ao chão e ele levanta-se sempre" e eu imaginei um rafeiro alentejano de 60 e tal quilos, à sombra de uma azinheira que já não sabia a idade, deitado a dar patadas naquilo e achar-se no paraíso da diversão. "Penso que não, ela é um bocado agitada, precisa de algo mais estimulante". Apresentou-me um outro, que faz lembrar uma maraca, veio-me à cabeça o José Eduardo Bettencourt e o Dias Ferreira em cima de um palco, "compro esse", disse eu. Mas fiquei com dúvidas que quis ver esclarecidas "ouça, acha mesmo que isto é resistente?", "do mais resistente que há - isto é mesmo Kong, esta a ver? Eles podem morder à vontade, cães grandes e tudo". Deviam ser nove da noite quando os primeiros pedaços começaram a aparecer espalhados pelo chão da casa.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Não morde

Ali ao pé do Mosteiro de São Vicente, passa um carocho por mim - daqueles de 50 anos que sobreviveram, em grande forma, a mais de três décadas de cavalo intravenoso e que, entretanto, descobriram o milagre da metadona e alternativas alucinogénicas menos destrutivas -, arnettes sem lentes na ponta da testa, headphones e começa a chamar a Lolis Regina. Ela, dada como só uma cadela cheia de amor para distribuir, acede ao chamamento e começa a puxar na direcção do homem, a abanar efusivamente o couto que lhe sobra de uma cauda outrora garbosa - e que ela própria tratou de destruir. Puxei a trela e mandei-a ficar e o homem "o que é que foi? Morde?" e eu a pensar "quem me dera" e a responder, fanfarrão e canastrão, "só morde quando calha". Continuámos, não lhe perguntei se acreditava em mim ou não, não me interessa. Não admito que, na rua, do nada, me chamem a cadela, como se eu não existisse, se eu não estivesse ali e ela fosse um objecto à disposição do público, pronta a obedecer a qualquer transeunte que lhe ache graça.

Carta de Apresentação

Boa tarde.

O meu nome é Diego e tenho, para além de conhecimentos, uma considerável experiência nesta área de trabalho, como os documentos e o currículo em anexo podem comprovar. Na verdade, nem sei por que me candidato ao cargo, visto que qualquer estagiário pode executar a função, embora com mais erros e mais dúvidas, por cerca de metade do meu preço. Ainda assim, envio a minha candidatura porque acredito que posso acrescentar alguma coisa à empresa, nomeadamente ao tão apregoado e diversas vezes sublinhado no vosso anúncio no Net Empregos "espírito de equipa". Sim, sou uma pessoa espirituosa, amiga do seu amigo, gosto de confraternizar e sei de sítios maravilhosos onde almoçar, jantar ou apenas beber um copo quando largamos do serviço. Creio que não exagero se disser que sou mesmo a pessoa ideal para fortalecer laços entre o vosso - que espero venha a ser nosso - grupo de trabalho. Camaradagem é comigo. Mais de uma década de redacções, revisões e edições podem não justificar a minha contratação e muito menos um salário compatível com a minha expectativa - já para não falar no meu modo de vida, que de frugal tem pouco (chego a gastar aos 15 euros num dia!). Porém, a minha alegria, os meus relatos do quotidiano junto à máquina de café, os meus comentários subtis sobre o fim-de-semana desportivo ou o meu carisma - amplamente comprovado em diversos guichets e repartições junto de funcionárias de meia-idade - podem perfeitamente fazer de mim a pessoa que procura para tornar este espaço de trabalho num lugar melhor, mais aprazível e, logo, mais capaz de responder às exigências de um mercado competitivo.

Aguardando a vossa resposta, com os melhores cumprimentos,

D.