sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Polipersonae

Aqui na Estrela as miúdas são tão uniformizadas e parecem-se tanto umas com as outras que eu diria que muitas delas são a mesma. Há pouco, uma passou por mim e eu disse-lhe "se te queres apanhar é bom que te despaches, que já vais ali à frente, quase a chegar ao metro" e ela, em passo acelerado, meio ofegante, "não há problema, quando eu chegar, espero por mim". Depois virou-se para si mesma, que vinha um bocadinho mais atrás, e gritou "anda, despacha-me!".

domingo, 4 de outubro de 2015

Uma manhã nas finanças

-Quanto é que ganhou o ano passado?
-Ganhei ximil e quinhentos.
-Ok... ora, isso em cinco meses. Dá xisípsilon por mês, ora vezes doze...
-Como assim vezes doze?
-Então, para saber quanto é que ganharia no ano todo.
-Está aí quanto é que eu ganhei no ano todo.
-Mas só trabalhou cinco meses.
-Sim.
-Então, eu assim faço o cálculo.
-Escute: está aí quanto é que eu ganhei no ano todo. Trabalhei só cinco meses. Sim. Do ano inteiro, trabalhei cinco meses. E ganhei, no ano todo porque só trabalhei cinco meses, xismil e quinhentos euros. Percebeu?
-Ouça, você não está a perceber. Eu preciso de saber quanto é que você ganharia em 2014.

(...)

-Criaturinha... tira a puta da cabeça de dentro do cu e dá-me ouvidos, se fazes favor: 2014 já acabou. Ganhei xismil e quinhentos euros. Ponto. Percebido?
-Não sei como hei-de lhe explicar isto de outra maneira - e zau, imprimiu-me esta merda.

Amanhã volto lá, corto-a ao meio com um x-acto, e a seguir peço a um ser humano alternativo para me alterar esta cagada. Se não resultar, volto lá no dia seguinte e assim por diante. Saem-me mais baratos os x-actos do que o IVA.

Primeiro de Outono

no outono tenho esperanças
há o perfume novo das mulheres e das árvores
há o vento a atirar-nos borda fora
para dentro do rio agitado
-não a mim
eu fico a ver tudo cá de cima, do miradouro

o céu cinzento arruma-me as ideias
pode chover, pode chuviscar
as pessoas ficam calmas
vamos beber vinho
vamos comer castanhas
vamos esperar que tudo renasça daqui a uns tempos
vamos aproveitar agora
enquanto tudo morre

terça-feira, 28 de julho de 2015

Sumo de laranja

Nós queríamos laranjas. A ideia era descascá-las, enfiá-las no liquidificador, carregar num botão e encher uma ou duas garrafas com sumo; guardar as garrafas no frigorífico e desfrutar de uma velhice descansada, nunca mais ter sede.

À beira da estrada, a tabuleta dizia "2kg = 1 euro; 5kg = 3 euros". Parámos. Saí do carro, as laranjas reluziam sobre a mesa improvisada, debaixo do guarda-sol gasto, mas não pude deixar de sentir uma certa angústia, como se alguma coisa não batesse certo. "Boa tarde", "boa tarde" respondeu a senhora também gasta. "Não quer levar antes um dos grandes?" e eu "mas isso não me sai mais caro?" - a temperatura desceu abruptamente estagnando nuns 34 graus: o ar arrefeceu quando a dúvida se instalou. A expressão intrigada e confusa da senhora colidiu metafisicamente com a minha sensação de que as Humanidades nunca me foram de grande serventia nas horas em que uma pessoa precisa de uma resposta rápida para para dar aos atrevimentos do destino.

"Levo um saco de dois quilos que o outro pesa muito e eu estou de férias" disse eu. Agora olho para o saco, vejo as laranjas ainda por descascar e sinto que tomei a decisão acertada.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Panteão

De repente, estávamos todos vestidos com calções demasiado justos, t-shirts fluorescentes, sapatilhas muito coloridas e de aspecto sofisticado, tudo com um ar caríssimo, eu tinha uma fita na cabeça e um relógio da era espacial com conta-quilómetros. Éramos um grupo grande, tudo gente muito gorda, mas corriam todos depressa, muito mais depressa do que eu, galgavam escadas, rampas, ruas e avenidas a uma velocidade que eu não conseguia acompanhar. Fui ficando para trás, cada vez mais para trás e cheio de dores e a faltar-me o ar e então eu parei e declarei com solenidade e com o fôlego que me restava "não quero mais correr com vocês! Quero correr com gente que seja ideologicamente estimulante e fisicamente compatível comigo!" Num instante, estava no meio de velhinhos, reconheci o Alexandre Herculano e o José Saramago e diz o Saramago "o Garrett hoje não vem que já está morto" e rimos todos muito, tudo à gargalhada. Por causa do riso senti nova pontada abaixo do diafragma, era a dor de burro, tínhamos atravessado a feira da ladra e estávamos a passar ao pé do Panteão, então eu disse "opá, corram vocês que eu fico já aqui" e diz o Herculano "que se lixe, ficamos todos".

sábado, 2 de maio de 2015

Notas de prova: Praia de 1 de Maio

Abertura com sol consistente que se manteve quase sempre intenso e adormecedor; a água apresentou-se como ponto fraco, ainda com pouco estágio sobre a laje recentemente aquecida; boa temperatura com final prolongado muito agradável que soube encontrar continuidade na Esplanada do Desportivo da Guia, onde o sabor do caracol novo rematou a tarde com elegância. Casou muito bem com canecas e, no prolongamento, já em casa, com cerveja engarrafada bem fresca.

3,5/5

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Salas de espera

Existe uma conspiração oculta para nos fazer sentir fracos quando estamos num hospital. Podemos estar saudáveis, isso não importa. É o hospital que nos tira as forças com a sua criptonite subtil. As televisões da sala de espera, com o som baixo o suficiente para que nada se entenda e alto quanto baste para que saibamos que estão ligadas, dão o Herman José gordo e feio e o Carlos Alberto Moniz feio e velho. As pessoas em redor não parecem doentes mas nota-se-lhes no olhar uma súplica constante "muda de canal", "mete os resumos da libertadores", "mete no axn, está a dar o Castle". Mudo de sala, o canal é outro. Neste recanto opressivo-depressivo a Luciana Abreu ri-se muito mas não se percebe o que ela diz, ouve-se apenas o burburinho da conversa que mantém com um convidado qualquer que desconheço. O João Baião também sorri com todo o profissionalismo, todo o sentido de missão. Não há cerveja, não se pode fumar. Os olhos em redor "epá mete um filme, porra", "muda para o fox life", "mete no youtube". O meu número surge no chamador de números. A minha ficha - vejo-a no ecrã do pentium 2, um policromático todo moderno - diz "diego armes sants" e eu digo "ó senhora, eu já pedi três vezes para emendarem o meu nome" e a senhora "olhe senhor diogo, eu aqui não posso fazer nada". Sento-me e deixo-me adoecer passivamente contemplando números 760 qualquer coisa qualquer coisa que dão cheques de 300 euros por mês para toda vida durante seis meses ou dois anos ou bêmedablius que uma pessoa depois não tem dinheiro para sustentar. E nem sei se estou à espera no sítio certo.