sábado, 14 de fevereiro de 2015

O concurso

Era ambiciosa e tinha um espírito empreendedor quase imparável, a Ana Rita. No 5.º ano já era sub-delegada de turma; no 7.º, sonhava ser presidente da Associação de Estudantes. O sonho ficou por cumprir: fez listas, concorreu, nunca ganhou. Mas também não desistiu. A vontade de intervir, de fazer mexer, de provocar, de agitar, levaram-na a formar uma comissão de festas independente. Como não era alinhada com o poder, via as suas propostas invariavelmente recusadas. Mas um dia conseguiu. Eu acredito que tenha vencido pelo cansaço dos outros, os que mandavam na Associação. Mas isso não é relevante. O que importa é que conseguiu. O 9.º ano estava a chegar ao fim. Na altura, a Ana Rita já tinha namorado. Era o Flávio. Eu não tinha namorada, mas também não gostava da Ana Rita, por isso o namoro dela não me afectava. Andavam de mãos dadas pelos corredores da escola e iam dar beijinhos e às vezes acho que se apalpavam atrás do pavilhão D, onde os mais rebeldes fumavam cigarros. Não sei se eles fumavam. Estavam sempre aos beijos, não deviam fumar. A proposta dela era simples: fazer um concurso de homens-estátua. Ela tinha ido a Londres com os pais e viu lá artistas de rua, aquilo ficou-lhe na cabeça. A Associação de Estudantes aceitou, o Conselho Directivo aprovou e começaram os preparativos. Marcou-se uma data, abriram-se inscrições, reservou-se o ginásio para a mostra pública. Na altura, pensei que ninguém fosse dar importância, mas enganei-me. Houve mais de vinte concorrentes. Viveram-se duas ou três semanas estranhas lá escola. Passávamos pelo campo de basket, pelo buffet, pelo polivalente e havia sempre alguém quieto, estático, só mexiam as pálpebras. Normalmente, estavam sozinhos. Eu próprio cheguei a sentir-me tentado mas acabei por perceber que não tinha disciplina para tanto. Chegado o dia do evento, o ginásio encheu-se de gente. Os concorrentes entraram depois dos discursos do presidente do Conselho Directivo e da própria Ana Rita, que elogiou os participantes e agradeceu a oportunidade de organizar qualquer coisa na vida. E depois fez-se silêncio. Lá estavam eles, quietos, no meio do ginásio. Foi bonito durante, talvez, os primeiros dois minutos. Mas depois começou a tornar-se maçador e a seguir cansativo, o público começou a abstrair-se daquele espectáculo bizarro de miúdos quietinhos a fazer pose. Começou o burburinho, os professores olharam-nos com severidade, depois vieram as risadas e depois os gritos, a galhofa, as conversas entusiasmados dos próprios professores que, por fim, já se riam à gargalhada tal como todos os outros. Só não riam os concorrentes - porque não podiam, uma vez que o objectivo era estarem quietos - e a Ana Rita. Houve quem começasse a sair, a coisa já não tinha interesse, tinham passado mais de vinte minutos e ainda nenhum dos concorrentes se tinha mexido. E a Ana Rita com aquela cara com que as pessoas ficam quando assistem ao seu próprio fracasso, quando perdem a esperança, quando se sentem frustradas. Às tantas, saiu porta fora. Acho que estava a chorar. Também não fiquei para ver, nem sei quem ganhou. Hoje, quando passo na Rua Augusta, não consigo evitar pensar que talvez a Ana Rita tivesse razão, talvez aquilo não fosse assim tão disparatado - lá estão os homens e mulheres-estátua, nas suas poses, nos seus pedestais, nas suas figuras, a ficarem quietos e a serem fotografados e a ganharem moedas de vinte e cinquenta cêntimos atirados por alemães, por italianos, por japoneses.

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